domingo, 19 de janeiro de 2020

A Redenção pela Arte Culinária


A Redenção pela Arte Culinária
Alan Watts
Só a Arte Culinária nos redime do ônus de ter de viver à custa de outras vidas



O
 corpo biológico não é uma coisa fixa, mas um processo em curso, tal como uma chama ou um redemoinho: só a forma é estável, pois a substância é um fluxo de energia que entra por uma extremidade e sai por outra. Somos oscilações temporariamente identificáveis em meio a uma corrente energética que entra em nós sob a forma de luz, calor, ar, água, leite, pão, fruta, cerveja, estrogonofe, caviar ou patê de foie gras. E sai de nós sob a forma de gases e excrementos – mas também como sêmen, bebês, confabulações, política, comércio, guerra, poesia ou música. Ou filosofia.    

Um filósofo, título que suponho merecer, é uma espécie de intelectual simplório que se assombra com aquilo que a gente mais sensata considera normal; é alguém que não pode deixar de maravilhar-se com os fatos mais banais da vida cotidiana. Como afirma Aristóteles, o espanto é o estopim da filosofia. A mim me encanta saber que vivo sobre uma grande esfera rochosa que gira em torno de uma imensa bola de fogo. Encanta-me ainda mais o fato de que sou, eu próprio, um labirinto, um complicado arabesco de tubos, filamentos, células, fibras e membranas que constituem espécies distintas de pulsações imersas na pulsação maior: aquela incessante corrente de energia. No entanto, o que realmente me perturba é que quase todas as substâncias que compõem o labirinto, com exceção da água, eram outrora corpos cheios de vida – corpos de animais e plantas. E que, por falta de escolha, delas tive de me apropriar mediante o assassinato. Não somos senão o rearranjo de outras criaturas, pois a existência biológica só se perpetua graças ao mútuo sacrifício e à mútua digestão das diversas espécies. Só existo como membro deste grupo de seres que florescem devorando-se uns aos outros.

É óbvio que ser devorado é algo muito doloroso, e não desejo tal sina para mim mesmo. Fico horrorizado só de imaginar a cena. Se os donos de crematórios não me pegarem primeiro, o fato de tornar-me um dia banquete de micróbios e vermes compensará suficientemente as vacas, os cordeiros, as aves e os peixes de que me fartei ao longo de minha vida? E eu me pergunto: não será esse gigantesco esquema biológico de mutilação recíproca uma engenhoca insana e diabólica que conduz aceleradamente a um beco sem saída? Tenho visto plantas atacadas pela mosca verde; se num dia se mostram apinhadas de pequeninos corpos gordos e suculentos, no próximo não são mais que pó cinza sobre hastes secas. A vida parece um sistema que se devora até a morte, e no qual a vitória equivale à derrota.

Pode o homem seguir facilmente o exemplo da mosca verde. Quando se torna um especialista em tecnologia, revela-se mais predatório que a piranha e o gafanhoto. Ele devasta, destrói e contamina toda a superfície do planeta: minerais, florestas, pássaros, peixes, insetos, água fresca – tudo é convertido em subúrbios e esgotos, ferrugem e poluição. Seu domínio completo sobre os inimigos naturais, desde o tigre até a bactéria, permitiu que proliferasse descontroladamente sobre o globo; e temendo a própria ganância, desperdiça montanhas de dinheiro na fabricação de armas cada vez mais mortíferas. Muitos animais pré-históricos extinguiram-se em decorrência do excessivo desenvolvimento de suas defesas naturais. Desapareceram, por exemplo, o tigre de dentes de sabre e o titanotério; o primeiro por causa da dificuldade em manejar suas imensas presas, e o segundo por causa do peso insuportável de seus chifres.

Alguém pode aceitar a ideia da morte da espécie, tal como aceita a da morte do indivíduo. A energia do universo adotará novos padrões e formas, e o universo dançará ritmos até então desconhecidos. O espetáculo, é claro, continuará; mas por que deve ele encerrar tão intensa agonia? Nervos e carnes sensíveis se contorcendo ao bater implacável de dentes afiados – será essa a condição indispensável à continuidade da vida? Se for, então o único problema filosoficamente sério, como afirmava Camus, é se devemos ou não cometer suicídio.

Consequentemente, o filósofo se pergunta: afora o suicídio, existe outra maneira de escapar deste círculo vicioso de matança recíproca, o qual não deixa de ser uma espécie de suicídio cósmico? Existe algum modo de evitar, mitigar ou abrandar esse sistema de assassinato e agonia implícito até mesmo na existência do mais espiritualizado dos seres humanos?  

O vegetarianismo não constitui uma solução. Há tempos o botânico indiano Jagadis Bose conseguiu medir as reações de dor das plantas ao serem arrancadas ou cortadas. Pode-se alegar que as plantas não sabem que sofrem; mas o mais razoável é reconhecer que elas não são capazes de expressar de maneira convincente, pelo menos para nós, a dor que padecem. Quando referi a pesquisa de Bose ao budista estritamente vegetariano Reginald H. Blyth, autor do clássico Zen in English Literature, ele respondeu: “Sim, eu sei. Mas os vegetais, quando os matamos, gritam muito baixo.” Em outras palavras, Blyth se mostrou condescendente com os próprios sentimentos. Monges hinduístas e budistas incorporam ao seu dia a dia a atitude de ahimsa ou não violência, ao extremo de não levantarem a vista do solo enquanto caminham – não, como poderíamos supor, para evitar a tentação provocada por uma esplendorosa passante; mas para evitar a morte por esmagamento de besouros, caracóis ou minhocas que por ventura encontrarem durante o percurso. No entanto, tal atitude não deixa de ser um subterfúgio, um gesto ritual de reverência pela vida que não altera em nada o fato de que vivemos graças ao morticínio.

Recorrendo à minha própria consciência para lançar alguma luz sobre tão espinhosa questão, encontrei três respostas.

A primeira consiste em admitir que a decisão de viver supõe a decisão de matar. E se estou realmente decidido a matar, é preciso fazê-lo de maneira eficiente. Que se considere a agonia de ser decapitado por um verdugo desastrado. A morte deve ser tão rápida quanto possível, e a mão que segura o rifle ou maneja o facão deve manter-se firme.

A segunda é levar em conta que toda forma de vida tornada alimento deve ser tratada conforme o princípio “Amo tanto esta manifestação da vida que vou comê-la”, o que significaria também “Como tanto esta manifestação da vida que vou amá-la.” Tal princípio tem sido negligenciado impiedosamente pela agroindústria e pela indústria pesqueira atuais. Para citar apenas dois exemplos, as modernas técnicas de pesca à baleia estão ameaçando a espécie de extinção, e a criação industrial de aves está saturando o mercado com pseudofrangos e pseudo-ovos. Criados em jaulas metálicas e alimentados com ração química, os desafortunados animais nunca ciscam a terra nem tomam sol; daí apresentarem a carne insípida. Tudo o que não gera prazer no prato não foi bem tratado nem na cozinha nem na granja.

A terceira foi genialmente apresentada por Lin Yutang da seguinte forma: “A galinha sacrificada e não devidamente preparada ao fogão morreu em vão.” O mínimo que eu posso fazer por uma criatura que morreu em meu benefício, é honrá-la – não com um ritual vazio de significado, mas cozinhando-a com perfeição e saboreando-a plenamente.

O amor às plantas e aos animais que tornam possível nossa vida deve manifestar-se sobretudo na cozinha.


domingo, 6 de outubro de 2019

Sagen Ishizuka: A Potência Transformadora do Alimento (Parte última)



Sagen Ishizuka:

A Potência Transformadora do Alimento
(Parte última)
                                                                                                                                                      Ronald Kotzsch




Mas os interesses de Ishizuka não se restringiam aos indivíduos. Os padrões alimentares, garantia ele, determinam também a qualidade de vida das famílias e das sociedades. Shoku-Yō, portanto, figura como um poderoso instrumento para os lares, comunidades e nações, tanto quanto para os indivíduos.

Deste ponto de vista, Ishizuka analisa a situação do Japão após a Restauração Menji. Ele observa que, desde a introdução da cultura ocidental, as condições físicas e espirituais da população japonesa têm declinado. O tipo físico dominante tem sofrido mudanças: os japoneses estão ganhando centímetros e quilogramas. A saúde da população deteriorou-se. Doenças como tuberculose e beribéri vitimam um número cada vez maior de pessoas. No passado, a expressão zukansokunetsu (“pé quente, cabeça fria”) indicava saúde e constituía o padrão entre os japoneses. Em meados do Período Menji, a condição da maioria da população é justamente o oposto – “pé frio, cabeça quente” –, comprovando o processo de degeneração e enfraquecimento fisiológicos por que passa a nação.

A conduta e os valores também degeneraram. As pessoas tornaram-se intelectualmente embotadas, moralmente confusas e faltas de direção. O Japão de outrora, distinguia-se por seus valores espirituais. Ishizuka invoca os termos kokoro (“coração” ou “mente”) e ōrishugi (“altruísmo”) a fim de significar a ética da gratidão, do respeito, da humildade e do autossacrifício que predominava no arquipélago. A partir de 1868, esses valores foram sendo substituídos por jūrishugi (“egoísmo”), uma ética do materialismo, da vaidade, do hedonismo; da indiferença para com o próximo; e da desconsideração para com a sociedade. Seidō, o “caminho da honradez” estava cedendo lugar a gon-dō, “o caminho da conveniência”. Ishizuka advertiu que o egoísmo e o mercantilismo tendiam a dominar o mundo.

Ishizuka não tinha dúvidas de que a causa desse declínio físico e moral se encontrava na mudança dos hábitos alimentares da nação. Desde o começo do período moderno, o Japão passou a fazer uso de alimentos como carne, laticínios, ovos, batatas, pão e açúcar refinados. Alguns desses alimentos talvez fossem adequados aos habitantes do Norte da Europa, cujo clima é seco e frio; mas não são apropriados para os japoneses. No ambiente mais quente e úmido do arquipélago, a dieta adequada consiste em arroz, vegetais e frutos do mar. Adotar a dieta ocidental, importar alimentos do exterior ou cultivar espécies exóticas, tudo isso viola as leis da Natureza. O preço a ser pago pela nação é a perda da vitalidade e da harmonia fisiológica, psicológica e espiritual.

A solução para a crise do Japão reside em Shoku-Yō, isto é, no consciente e sistemático regresso aos padrões alimentares tradicionais. É necessário que a nação retorne à sua dieta tradicional: arroz integral como alimento básico, acompanhado de vegetais locais como complemento. Esses alimentos devem ser cultivados de acordo com os métodos tradicionais, que utilizam apenas fertilizantes orgânicos. Fertilizantes químicos, desenvolvidos na Europa e recém-introduzidos no Japão, destroem o natural equilíbrio mineral do solo e das plantas, alertava Ishizuka. Importa ainda que a nação resgate a tradição de banhos terapêuticos, esquecida no período moderno. Por meio dessas medidas, poderia o Japão recuperar sua vitalidade fisiológica, moral e espiritual.

O sentido de missão de Ishizuka ia além de sua pátria. Na capa interna de Yōjōhō, lê-se a seguinte inscrição:

O alicerce do mundo é a nação.
O alicerce da nação é o lar.
O alicerce do lar é o corpo.
O alicerce do corpo é o espírito.
O alicerce do espírito é o alimento.

Ishizuka considerou a relevância deShoku-Yō para a saúde e bem-estar de todas as pessoas e nações. E ele a concebeu como a chave secreta de uma estável e pacífica ordem mundial. Indivíduos felizes e saudáveis formam um lar estável. Do mesmo modo, nações equilibradas e sãs podem dar origem a uma estável e pacífica comunidade internacional.

Sagen Ishizuka construiu uma notável carreira. Mesmo quem rejeita suas premissas e conclusões não pode deixar de reconhecer o alcance e a nobreza de sua obra.

·        Ele contestou os pressupostos da moderna teoria nutricional e apresentou uma nutrição ecológica, baseada na visão do homem como parte do ambiente natural e dele dependente.
·        Ele contestou os pressupostos da moderna medicina alopática, e apresentou um sistema terapêutico baseado em alimentos simples e na natural tendência do organismo em direção à cura.
·        Ele empregou em suas obras a terminologia da química e ciência modernas, e amparou sua visão em amplos dados empíricos – experimentais, históricos e antropológicos.
·        Ele nos legou uma abrangente teoria do desenvolvimento e comportamento humanos baseada na alimentação e na ideia de que o ser humano é um todo psicofísico.
·        Ele analisou os problemas de seu tempo a partir dessa perspectiva, e concebeu uma solução que poderia ser aplicada tanto ao Japão quanto ao resto do mundo.
·        Encontra-se, impulsionando todo o seu trabalho, o sonho de um mundo saudável e pacífico.

Como George Ohsawa afirma, Ishizuka foi um dos grandes pensadores do mundo moderno, e a publicação de seus livros representa, efetivamente, um evento mais importante do que a descoberta da América por Cristóvão Colombo. Talvez, um dia, seja isso amplamente reconhecido. Por enquanto, porém, Ishizuka permanece ignorado em seu próprio país. Seus escritos, cuja última edição conta já quarenta anos, estão fora de catálogo. Nos círculos macrobióticos do Japão e ao redor do mundo, é Ishizuka, quando muito, lembrado somente como uma figura importante do passado. O verdadeiro pai da moderna “macrobiótica” espera ainda pelo justo reconhecimento mesmo daqueles mais influenciados pelo seu legado.

domingo, 1 de setembro de 2019

Sagen Ishizuka: A Potência Transformadora do Alimento (Parte sétima)


Sagen Ishizuka:
A Potência Transformadora do Alimento
(Parte sétima)
                                                                                                                                      
                                                                                                            Ronald Kotzsch



Com o sucesso de seu segundo livro, viu Ishizuka sua fama crescer. Era ele assediado por uma multidão desde a aurora. Os enfermos batiam à sua porta de madrugada e disputavam cartões numerados para serem atendidos. A certa altura, teve que limitar-se a cem consultas por dia. O humilde e despretensioso Ishizuka, que insistia em anotar suas prescrições em tiras de papel usado, tornou-se conhecido em todo o Japão. Ganhou o epíteto de “antidoutor”, pois era capaz de curar só com alimentos até mesmo os desenganados pela medicina moderna. Com efeito, ele se recusara a lançar mão de quaisquer medicamentos e técnicas cirúrgicas. Ishizuka recomendava uma dieta baseada em arroz integral, embora prescrevesse arroz parcialmente polido àqueles com problemas digestivos. Para determinada pessoa, podia indicar um alimento suplementar específico – nabo comprido japonês, bardana, tangerina, etc. –, objetivando restaurar seu equilíbrio mineral. Para certas doenças prescrevia certos alimentos. Para alguém com digestão precária, por exemplo, receitava feijão azuki, algas marinhas e brotos de bambu. Para alguém com transpiração excessiva, sugeria algas hijiki.

A fama de Ishizuka chegou a tal ponto que as cartas endereçadas ao “Dr. Daikon” ou ao “Dr. Missoshiru” chegavam a ele sem problemas. Entre seus pacientes encontravam-se ricos e poderosos, membros da aristocracia, militares e políticos; mas também pobres e pessoas comuns. Em 1908, um grupo decidiu formar uma organização para promover os ensinamentos de Ishizuka. No dia do Festival de Outono da Nova Colheita de Arroz daquele ano, eles fundaram a Shoku-Yōkai ou “A Sociedade da Cura pelo Alimento”, nomeando Isizuka conselheiro. Esta foi, efetivamente, a primeira organização macrobiótica da história. Um centro se estabeleceria em Tóquio; reuniões mensais se realizariam no local; e uma publicação mensal, chamada Shoku-YōShimbun, viria a lume. Em sua capa, um subtítulo em Inglês anunciaria: “Uma publicação dedicada à promoção da Nova Ciência Química do Cerealismo introduzida pelo Sr. Ishizuka Sagen.”

Ishizuka permaneceu bastante ocupado, escrevendo, ministrando palestras, viajando e dando consultas em Tóquio e em outros lugares. AShoku-Yōkai cresceu, e filiais surgiram em outras cidades, incluindo Osaka, Shizuoka e Sendai. Em 1910, entretanto, Ishizuka desenvolveu catarro estomacal, resultado, segundo Ohsawa, do excesso de trabalho. Mas ele manteve os compromissos, e no dia do Festival da Colheita, dois anos exatamente depois da fundação da Shoku-Yōkai, expirou. Milhares de pessoas acompanharam seu cortejo fúnebre em Tóquio.

A obra de Ishizuka, como médico, está baseada na importância do alimento para a saúde humana. Mas ele compreendeu o alimento como fator-chave envolvido em todos os aspectos da vida. Não somente as condições fisiológicas de alguém, mas a sua constituição física, seus traços de personalidade, seus padrões psicológicos e mesmo seu nível espiritual são determinados pelo inter-relacionamento de certos minerais e, portanto, pela dieta. Na verdade, o que Ishizuka propõe é uma teoria geral da evolução e do comportamento humanos baseada no alimento. Para ele, a dieta de um indivíduo desempenha um papel crucial em sua vida moral, social, política e religiosa, tanto quanto em sua fisiologia. Seu próprio sentimento de missão e seus planos para a Shoku-Yōkai foram muito além da cura das doenças individuais.

Em Chōjuron, por exemplo, Ishizuka observa que os habitantes das áreas costeiras tendem a ser mais baixos e robustos e a ter a face mais esférica. Tais tendências, afirma Ishizuka, devem-se à relativa abundância de sódio no solo, ar, água e, consequentemente, no alimento. Nas planícies continentais, longe do litoral, e no alto das montanhas, o potássio predomina no ambiente e, portanto, nos alimentos e nas pessoas. Os habitantes dessas regiões tendem a ser mais altos e delgados e a ter a face mais ovalada. Falta-lhes a força física das pessoas com Na dominante, embora possuam mais resistência e flexibilidade.

O equilíbrio Na/k determina diretamente muito mais do que o tipo físico. Num gráfico apresentado em Yōjōhō, Ishizuka lista as seguintes características como sendo também resultantes da proporção entre aqueles minerais: altura, peso, ritmo de desenvolvimento, ritmo de amadurecimento, tempo de vida, tipo de voz, tipo de inflexão ao falar, temperamento, memória, rapidez de julgamento, capacidade de resposta emocional, queda para negócios, capacidade de guardar segredos, moralidade, tranquilidade e força de espírito, e bom coração.

A descrição de Ishizuka dos tipos Na-dominante e k-dominante é bastante profunda e específica. Os primeiros tendem a ser fisicamente ativos, agressivos e barulhentos. São materialistas, mundanos e ambiciosos. Seu modo de pensar é dualista, veem os opostos homem e natureza, bom e mal, espírito e matéria como absolutamente separados e mutuamente excludentes. Um forte desequilíbrio em Na, causado por uma alimentação rica em proteína animal, resulta em agressividade, ganância, crueldade e tendência para menosprezar os outros.

Os tipos K-dominantes, isto é, pessoas que vivem sob uma total ou quase total dieta vegetariana, são mais tranquilos, sensíveis e introspectivos. Seu ponto de vista é mais espiritual do que materialista, e seu pensamento flagrantemente monista. Eles veem os opostos como parte de um todo harmonioso, e percebem as contradições e conflitos como aparentes, e não como reais. Enquanto o desejo sexual num indivíduo Na-dominante tende a ser esporádico, tempestuoso e efêmero, num indivíduo K-dominante ele costuma ser constante, delicado e duradouro. Enquanto uma dieta rica em sódio desenvolve sai (astúcia mundana), uma dieta rica em potássio alimenta chie (sabedoria espiritual).

De acordo com Ishizuka, até mesmo o desenvolvimento de níveis mais altos de espiritualidade é controlado pelo alimento. Todos os grandes sábios e santos, segundo ele, viveram sob um regime de grãos integrais e vegetais cozidos com sal. O efeito do alimento é tão poderoso e sutil que cada grão produz diferentes tipos de desenvolvimento espiritual. Os níveis mais altos de espiritualidade surgem para aqueles que adotam o arroz integral como alimento básico. Os santos que comem trigo ou uma mistura de grãos desenvolvem um tipo de espiritualidade mundana, menos pura, mas que lhes permite lidar com as questões do dia a dia.

Portanto, o ser integral do homem, sua vida e destino dependem da seleção e preparação do alimento diário. Se ele elege uma dieta em consonância com seu meio natural e bem proporcionada de sódio e potássio, experimentará uma vida longa e saudável. Ele desenvolverá uma mentalidade generosa e expansiva; será naturalmente educado, virtuoso e capaz de se alegrar com a alegria dos outros. Terá boa memória e espírito elevado. Por outro lado, se adotar uma dieta que viola a ordem natural, tornar-se-á animalesco no corpo, na mente e no espírito. Pode o homem fazer-se a si mesmo um “fantasma faminto” (gaki), escravo de seus desejos, ou um “bodhisattva” (bosatsu), a encarnação do amor altruísta e da compaixão. O segredo reside no seu alimento diário. Shoku-Yō consiste, portanto, numa disciplina de vida crucial tanto para a mente e o espírito, quanto para o corpo. Destina-se a curar e aperfeiçoar o indivíduo como um todo, e não meramente eliminar os sintomas das doenças.

domingo, 9 de junho de 2019

Sagen Ishizuka: A Potência Transformadora do Alimento (Parte sexta)



Sagen Ishizuka:

A Potência Transformadora do Alimento
(Parte sexta)
                                                                                                               
                                                                                                                                               Ronald Kotzsch





A teoria de Ishizuka fundamenta-se em conceitos bastante simples. Em primeiro ligar, afirma que a saúde e a longevidade humanas dependem do equilíbrio, no corpo, entre os sais de sódio e potássio. Enquanto a teoria nutricional do Ocidente (tanto a daquela época quanto a de hoje) enfatizava as proteínas e os carboidratos, Ishizuka insistia na importância crucial dos minerais, em especial do sódio e potássio. A proporção entre eles determina a habilidade do corpo de absorver e utilizar outros nutrientes. De que o sódio e o potássio estejam em franca harmonia depende o funcionamento adequado de todo o organismo humano.

O segundo princípio sustenta que é o alimento o fator mais importante na determinação deste equilíbrio fundamental. Outros fatores, tais como a geografia, o clima e a frequência da atividade física, também desempenham o seu papel. Viver no litoral ou nas montanhas, num clima seco ou úmido, ser sedentário ou trabalhador braçal, todas essas variantes produzem um efeito. Mas aquilo que ingerimos é que vai fundamentalmente determinar a taxa de sódio e potássio no corpo.

Por conseguinte, e em terceiro lugar, a saúde e a doença humanas são, sobretudo, efeitos da dieta. A base do bem-estar físico é o alimento diário que fornece o equilíbrio adequado de minerais. Tal dieta proporcionará uma vida longa e livre de doenças. Por outro lado, toda doença se origina no desequilíbrio entre sódio e potássio causado por uma dieta inapropriada. Tanto as doenças contagiosas quanto as degenerativas, garante Ishizuka, têm origem no alimento. Bactérias e vírus afligem somente aqueles que se encontram debilitados e suscetíveis à doença por causa de seu desequilíbrio Na/K. Uma pessoa verdadeiramente saudável, ainda que em contato com patógenos, não cairá doente. A medicina alopática, portanto, objetivando apenas destruir o micro-organismo – em vez de fortalecer o indivíduo contra ele – baseia-se numa visão totalmente equivocada da realidade.

Tendo estabelecido que a saúde e a longevidade baseiam-se na alimentação, Ishizuka interroga-se sobre qual seria a dieta mais apropriada para os seres humanos. O que deveríamos ingerir a fim de manter o equilíbrio ideal entre os minerais? Para responder a esta questão, Ishizuka procede a uma análise da fisiologia humana, da ecologia e da história.

Ao selecionar seus alimentos, deveria o homem considerar, antes de qualquer coisa, sua estrutura fisiológica. Tanto a dentição quanto o sistema digestivo humanos indicam que, por natureza, é o homem um granívoro, ou seja, um ser que se nutre de grãos de cereais. Dos 32 dentes dispostos em sua boca, 4 são caninos pontiagudos, adequados para rasgar a carne; 8 são incisivos, próprios para cortar vegetais e frutas; e os 5/8 restantes, chamados molares, destinam-se a triturar grãos. A estrutura dentária do homem demonstra aproximadamente a porcentagem de cada tipo de alimento na dieta que cumpriria a ele adotar. Além disso, o ser humano é provido de um estômago pequeno e de um longo e retorcido tubo intestinal, enquanto os animais carnívoros apresentam estômagos grandes e intestinos curtos. O sistema digestivo humano é, portanto, especialmente estruturado para lidar com vegetais, dos quais os mais compactos e nutritivos são os cereais em grãos.

O ambiente em que vive o homem também importa ser considerado. De acordo com Ishizuka, consiste o homem, sobretudo, num produto de seu meio natural. Determinado ambiente fornece os alimentos que permitirão ao organismo humano funcionar satisfatória e saudavelmente naquela região e clima particulares. Deveria o homem, portanto, ingerir alimentos que crescem natural e abundantemente no espaço em que ele se fixou. Esses frutos da terra proveem o equilíbrio adequado de nutrientes, especialmente a proporção ideal de Na e K. Segundo Ishizuka, exceto nas regiões árticas e tropicais, o alimento mais abundante e fácil de cultivar são os cereais. A espécie pode variar de região para região; mas, em geral, conviria serem os cereais o alimento principal num clima temperado. Contêm eles, aproximadamente, a relação 3:7 de sódio e potássio, considerada por Ishizuka a ideal para a saúde humana. Os grãos integrais, que conservam a proporção natural de minerais e outros nutrientes, deveriam compor de 60 a 70% da dieta diária.

Ishizuka ainda argumentava a favor de uma dieta baseada em cereais do ponto de vista da história. Toda civilização importante adotou algum grão como alimento principal. No Japão e no Sul da China constituiu o arroz o cereal dominante; no Norte da China, este lugar coube ao painço e ao trigo; nas Américas, ao milho; na Europa do Norte, à cevada e ao centeio. O sentimento geral de dependência para com esse alimento básico é tão forte nos variados povos, que cada grão em particular foi por eles deificado e venerado.

Ishizuka sustenta, pois, que é o homem, por natureza, um comedor de cereais, e que para os habitantes das regiões temperadas não há melhor alimento que os grãos inteiros. Leguminosas, vegetais, sementes, nozes, algas marinhas, peixes, carne de caça e outros produtos regionais deveriam suplementar os cereais. Convém que tais suplementos sejam ingeridos, tanto quanto possível, frescos e na estação propícia. A sábia Natureza providencia ao homem o alimento perfeito para cada estação. Destarte, nos meses de calor, o homem deve ingerir vegetais e frutas da época. No inverno, deve ele contar com alimentos que se preservam facilmente durante um longo período (feijões, algas marinhas, peixes secos) e com frutas desidratadas e vegetais em conserva. O nabo comprido japonês, embora não medrando no inverno rigoroso, quando conservado em sal e farelo de arroz, ajuda-nos a enfrentar as temperaturas muito baixas.

Se para Ishizuka a escolha apropriada dos alimentos constitui o fundamento da boa saúde, a preparação dos mesmos não é menos importante. O uso do calor, água, sal e temperos na cozinha, e a combinação dos vários alimentos afetam o equilíbrio Na/K da refeição e, portanto, a condição daquele que a consome. Mesmo os alimentos indicados – grãos e vegetais da estação – podem provocar doenças quando mal preparados. Por outro lado, alimentos desaconselhados, tais como carne (Na em excesso) e berinjela (K em excesso), quando sabiamente preparados, podem tornar-se inócuos. Ishizuka chama a atenção para o fato de que receitas tradicionais, como carne cozida com gengibre e cebola ou berinjela cozida com missô, refletem um conhecimento, ainda que intuitivo, deste princípio.

A ideia de que é o alimento a causa principal das enfermidades sugere que ele seja também agente de cura. Se determinada dieta leva ao desequilíbrio dos minerais, ao qual se segue a doença, outra dieta pode reinstalar o equilíbrio. De fato, asseverava Ishizuka que o alimento deve ser a base de toda cura verdadeira. Com o alimento selecionado e preparado de acordo com as necessidades de cada doente, quaisquer enfermidades podem, em princípio, ser curadas.

Entretanto, as recomendações de Ishizuka não se restringem à dieta. Ele reconhece o papel complementar dos banhos e exercícios na cura. Exercícios que levam à transpiração provocam a descarga de excesso de sais e estimulam a circulação e digestão. Banhos quentes revelam um efeito semelhante, removendo minerais e instaurando o equilíbrio. Ambos os livros de Ishizuka incluem largas discussões sobre variados tipos de banhos (no vapor, com pedras quentes, turco, etc.) e prescrições para seu uso em diferentes transtornos.

domingo, 10 de março de 2019

Sagen Ishizuka: A Potência Transformadora do Alimento (Parte Quinta)


Sagen Ishizuka:

A Potência Transformadora do Alimento
(Parte Quinta)

                                                                                                                                             Ronald E. Kotzsch




Estimulado por essas fontes, Ishizuka decide mudar sua alimentação. Elimina a carne e o leite, e põe-se a comer arroz não polido como alimento principal. A doença, até então rebelde aos tratamentos modernos, cede diante da sabedoria ancestral.

Por volta de 1880, Ishizuka tinha já, segundo Ohsawa, formulado a base de sua teoria. Mas ele nada publicou à época,  só vindo a fazê-lo mais de uma década depois. Nesse ínterim, deu continuidade a seus estudos e pesquisas, acumulando dados que corroborassem suas ideias. Numa época obcecada pela ciência, foi ele, acima de tudo, um cientista. Procurou, além de testar e validar suas teorias, apresentá-las de um modo convincente. De qualquer maneira, ele e seu trabalho seriam recebidos com escárnio e ceticismo.

Nos anos seguintes Ishizuka continuou os experimentos em si próprio. Certa vez, com o intuito de determinar seus efeitos, alimentou-se exclusivamente com batata-doce durante um mês. Mas não deixava escapar a oportunidade de verificar em outros indivíduos os resultados de determinada alimentação. Como médico da cavalaria, era ele encarregado de recuperar os soldados feridos e doentes. Tentou várias dietas num recruta para saber qual delas estimulava mais sua recuperação. A saúde dos animais também ficava a seu cargo. Em dada ocasião, deparou-se-lhe um cavalo rebelde no acampamento. Ishizuka aboliu a ração de aveia e sal (uma alimentação humana, como ele argumentou) e permitiu que o animal pastasse sobre a grama selvagem. O cavalo tornou-se dócil e fácil de adestrar.

Ishizuka ainda ocupou-se com pesquisas antropológicas, algumas a partir de fontes indiretas. Ele lia tudo sobre os povos tradicionais espalhados pelo mundo – esquimós, mongóis, nativos de Kamchatka –, recolhendo principalmente informações a respeito de suas dietas, fisionomia e características dominantes. Nas forças armadas, ele observou soldados de várias partes do Japão e China. Manteve um registro cuidadoso e sistemático dos tipos físicos e raciais, e das dietas e comportamentos.

Ishizuka também levou a cabo experiências químicas, muitas das quais imaginativas, embora, para nosso olhar contemporâneo, algo primitivas. A fim de comparar a digestibilidade da gema e da clara do ovo, por exemplo, ele planejou uma experiência de laboratório com o missô. As bactérias presentes na pasta de soja fermentada assemelham-se àquelas que realizam a digestão no intestino humano. Ishizuka, então, misturou em um recipiente missô com a gema de ovo, e em outro missô com a clara de ovo. A gema decompôs-se mais rapidamente, sendo, portanto, considerada de mais fácil digestão. Em outra experiência, Ishizuka testou os efeitos do sódio na oxidação. Deixou ele de molho em água salgada uma corda, secou-a e, depois, mediu sua combustibilidade. A corda queimou mais lentamente do que outra inalterada. Ishizuka concluiu, pois, que o excesso de sódio no organismo inibe a oxidação. Além de pesquisar, lia revistas científicas publicadas no Ocidente.

Ishizuka também lia sobre história dos alimentos e sabedoria tradicional alimentar, sobretudo do Oriente. Seus estudos sobre o Budismo convenceram-no de que Sidarta Gautama proibira aos monges a ingestão de carne não apenas para evitar o sacrifício de uma vida, mas também para evitar os efeitos adversos da carne sobre o desenvolvimento espiritual. Buda, segundo ele, sustentava que a saúde é a condição natural do organismo humano e que os grãos são o alimento purificador por excelência. Os sábios chineses Confúcio e Mêncio já haviam advertido contra a ingestão de carne e outros alimentos similares. Ishizuka descobriu que durante o Período Han (207 a.C. – 220 d.C.), no ápice da civilização chinesa, o alimento básico era o arroz integral tostado cozido no vapor. Voltando-se para o Japão antigo, tomou conhecimento de que o Imperador Temmu (que governou o país de 673 d.C. a 686 d.C.) expedira uma ordem contra o consumo de animais domesticados, e que entre as leis do clã do samurai KiyomasaKatō (século XV) destacava-se a proibição do polimento do arroz. Informou-se ainda de que, até o período moderno, o costume nacional consistia em alimentar-se apenas duas vezes ao dia, prática que persistiu em certas regiões, como a província de Niigata, mesmo com a ocidentalização.

Em 1895, embora ocupando um alto cargo no Exército (era, o que não deixa de ser irônico, chefe do Departamento Farmacêutico), Ishizuka demitiu-se. Começou a praticar a medicina como profissão liberal e a preparar sua obra para publicação. Justamente nesse período, havia no Japão um movimento conservador e nacionalista. Os valores ocidentais, sobretudo os concernentes à moral e às relações sociais, estavam sendo questionados. Enfatizava-se a cultura tradicional japonesa e a conservação do Yamato-damashii. Talvez Ishizuka tenha sido encorajado por essa reação a apresentar suas ideias ao público.

De qualquer forma, em 1897 Ishizuka publicou seu opus magnum: KagakutekiShoku-YōChōjuron (Teoria Nutricional e Química da Longevidade). O volume, de 500 páginas, expõe os resultados de todos os seus estudos e pesquisas. Na primeira página ele anuncia seu propósito: “formular uma disciplina alimentar prática baseada em leis científicas.” E ele é fiel a esse objetivo. Sua teoria geral da fisiologia humana, do alimento, da saúde, da doença e da medicina fundamenta-se na relação entre os elementos químicos sódio (Na) e potássio (K). Ishizuka descreve as características dos dois sais e explica como eles controlam o funcionamento de todo o organismo humano. Ele fornece tabelas com a análise dos conteúdos de sódio e potássio nos vários alimentos, além de mapas com a distribuição geográfica desses últimos. Apresenta tantas informações científicas, que quase compromete a importância prática de seu livro.

Quando Ishizuka menciona práticas tradicionais e a sabedoria popular, ele deixa claro que seu objetivo é tão somente fornecer evidências comprobatórias. Sua teoria sustenta-se na química e ciência moderna. Ele não lança mão de termos tradicionais. Ohsawa, que introduziu a filosofia do Yin e Yang no movimento inaugurado por Ishizuka, alega que a teoria do sódio-potássio derivou dessa antiga classificação dos fenômenos. Embora Ishizuka tenha provavelmente sofrido influência do pensamento antigo, arraigado na cultura japonesa, ele não dá indicações que comprovem tal fato. Ele menciona os termos uma ou duas vezes, casualmente, e segue mantendo tanto uma abordagem quanto um vocabulário admiravelmente moderno e científico. Escrevendo em plena era da ciência, Ishizuka não se arriscou a comprometer sua mensagem com o uso de categorias e conceitos considerados obsoletos e supersticiosos.

Em 1898 um segundo livro vem a lume: ShokumotsuYōjōhō: IchimeiKagakutekiShoku-Yō Tai Shin Ron (Um Método para Nutrir a Vida por Meio do Alimento: Uma Incomparável Teoria Química e Nutricional do Corpo e da Alma). Ishizuka concebeu esta obra como um manual prático dirigido ao grande público, uma ferramenta para qualquer indivíduo obter “mais saúde, boa memória, desenvolvimento mental e tranquilidade espiritual.” Escrito em linguagem simples e direta, e omitindo a maioria das informações técnicas, o volume concentra-se nos caminhos práticos para se alcançarem a saúde e a longevidade. Ishizuka menciona alguns de seus experimentos e cita evidências históricas e antropológicas, mas em geral remete os leitores à sua primeira obra para maiores detalhes. Embora esclareça que o livro se baseie em rigorosa pesquisa científica, ele insiste sobre suas implicações na vida diária. Ao contrário do Chōjuron, este segundo livro contou com ampla distribuição, alcançando vinte e três edições.

domingo, 13 de janeiro de 2019

Sagen Ishizuka: A Potência Transformadora do Alimento (Parte Quarta)



Sagen Ishizuka:

                    A Potência Transformadora do Alimento 
                                             (Parte Quarta)


                                                                                                     Ronald E. Kotzsch

                                                                                                                                       
Ishizuka também sofreu forte influência de Nanboku Mizuno. Nanboku tornou-se bastante conhecido no final dos anos 1700. Foi ele um pioneiro da fisiognomonia, estudo das relações entre as características físicas e a personalidade dos indivíduos. Para aprofundar-se nesta arte, Nanboku passou anos trabalhando como barbeiro, depois como assistente em instalações públicas de banho, e finalmente como ajudante num crematório. Em tais empregos, teve ele a oportunidade de observar uma legião de indivíduos e correlacionar-lhes o padrão constitucional e os traços fisionômicos com o destino e a personalidade. Em 1788, os primeiros cinco volumes de seu “O Método Nanboku de Fisiognomonia” viriam a lume. Em 1805, os cinco últimos seriam publicados.

A arte de Nanboku consistia fundamentalmente em revelar o caráter de uma pessoa, assim como seu passado e futuro, através da observação minuciosa de sua aparência física. Seus livros trazem longas seções sobre o significado de vários tipos de nariz, olhos, orelhas, boca, cabeça e sinais incomuns. Por exemplo, narinas extremamente alargadas indicam uma pessoa muito enérgica, talvez agressiva; já uma pinta na bochecha esquerda denuncia um tagarela. Nanboku afirmava que, enquanto nossa estrutura fisionômica é em grande parte herdada, nossa aparência é radicalmente influenciada por nossa alimentação e estilo de vida. Este ponto de vista bem como a ideia de que a fisiologia está intimamente relacionada à psicologia, ao comportamento e mesmo à espiritualidade influenciaram sobremaneira a Ishizuka.

Provavelmente Ishizuka deixou-se inspirar também pela obra de Ekken Kaibara, filósofo, escritor e divulgador do pensamento e da moral confucianos que viveu entre 1630 e 1714. Kaibara escreveu sobre uma ampla variedade de temas, incluindo filosofia, educação, ética e história natural. Sua obra “Regras para Nutrir a Vida” consiste num manual prático de higiene e cuidados para com a saúde. Amplamente lida no Período Edo, converteu-se num clássico da medicina e sabedoria populares. Embora Ishizuka não a mencione em seus próprios escritos – e tampouco o faça Ohsawa em sua biografia de Ishizuka–, muito provavelmente a obra teve grande influência sobre o pensamento do precursor da macrobiótica. É inconcebível que, na qualidade de sério estudante da medicina tradicional, não tenha Ishizuka compulsado desde cedo o famoso volume.

Os ensinamentos médicos e práticos de Kaibara baseiam-se largamente nos antigos textos chineses, incluindo o Tratado de Medicina Interna do Imperador Amarelo. Uma de suas ideias centrais insiste em que, dos diversos fatores que afetam nossa saúde, o alimento e a bebida são os mais importantes. Para defendê-la, cita um antigo ditado: “Se a calamidade sai pela boca, a doença por ela entra.” Afirma que “de tudo o que comemos e bebemos, o mais importante é o arroz.” Podemos suplementá-lo com carne e vegetais; “a carne, ingerida raramente, não traz consequências funestas.” Citando ainda os antigos, escreve: “Os cereais devem prevalecer sobre a carne”, “a carne dos quadrúpedes revela-se prejudicial aos japoneses, dada a debilidade de seus intestinos e estômago.”

A essência da terapêutica de Kaibara reside no autocontrole e na moderação, seja no beber e no comer, seja na atividade sexual, no dormir e na conversação. Dever-se-ia comer apenas quando a sensação de fome estivesse claramente presente, e só o correspondente a 80% da capacidade do estômago. Não se deveria dormir logo após as refeições, mas sim executar alguma atividade leve, sendo a caminhada uma excelente opção. Seria aconselhável ainda diminuir deliberadamente a frequência da atividade sexual com o passar dos anos. Recomendar-se-ia também não dormir muito nem deixar-se levar pela tagarelice. O segredo da saúde e da longevidade está, pois, em controlar esses desejos e evitar as sete emoções extremas: alegria desmesurada, raiva, preocupação, tristeza, medo, melancolia e espanto. Procedendo assim, seria o homem capaz de conservar a vitalidade e viver uma longa vida, livre de doenças e debilidades.

Segundo Kaibara, a vida do homem pode e deveria ser longa e feliz. Poderia o homem chegar, segundo Kaibara, tranquilamente aos cem anos. Se alguém pratica o Yōjōhō (“método para nutrir a vida”), isso pode muito bem ser concretizado. E durante esse tempo, o homem deveria ser feliz e saudável, capaz de experimentar prazer infinito mesmo nas coisas simples do dia a dia, como ler poesia, contemplar a natureza e a mudança das estações, comer vegetais cultivados em seu próprio quintal, beber saquê (moderadamente, é claro!). “Afinal de contas, deleite e prazer são coisas a que o Céu e a Terra destinaram os seres viventes, e de que os homens já nasceram dotados.” Kaibara é um defensor da moderação, não do ascetismo. Para ele, uma vida curta ou enferma constitui uma calamidade que o homem atrai para si mesmo mediante a imprudência e a autoindulgência. É uma espécie de suicídio.

domingo, 30 de dezembro de 2018

Tornar-se humilde e puro


“É preciso esquentar o ferro várias vezes e martelá-lo muito tempo, antes que ele possa tornar-se aço temperado. E só então é possível dar-lhe a forma que se deseja e dele fazer uma espada cortante. Da mesma forma, um homem deve passar várias vezes pela fornalha das tribulações, deve ser batido pelas perseguições do mundo antes de tornar-se humilde, puro e capaz de ascender à presença de Deus”.

Ramakrishna